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Gerda: A PORTA DO CAOS

Estava com a vida num marasmo que não entendia. Tinha começado a passar por uma série de transformações que estavam doendo até aquele momento, mas tudo parecia calmo, demais até, pensava. A sensação louca que tinha era de estar na beira de uma praia vendo a mansidão do mar, mas seu coração tinha uma mania chata de antever e palpitar descompassado, o que pensava ser arritmia era uma intuição de arrancar paz, era de família sua avó dizia, “pajé bom é assim mesmo”, odiava àquelas frases da matriarca, mania de me assustar, eu hein.   Mas era assim, seu peito palpitava, sentia que ia morrer de falta de ar, seu corpo paralisava de olhos abertos, e tinha uma miração. Ia acontecer de novo. Viu uma onda do tamanho de um prédio vindo em sua direção prestes a quebrar na sua cabeça, seu corpo começou a somatizar e suou dois litros inteiros, a água escorreu debaixo de seus seios, a boca seca e o desequilíbrio a fez cair no chão. Que merda é essa, é crise de pânico só pode, a onda tá se aproximand
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Gerda: A PORTA DO MEDO

Artemísia Gentileschi.  Susana e os velhos, 1610. Óleo sobre tela, 170×121 cm Gerda abriu a porta do medo, lá estavam presentes projetos perdidos, falta de consciência e ombridade, letargia, ausência de vigor e caminhos de expansão, injustiças. Para seu espanto, percebeu que sentimentos nem tão primitivos também estavam ali, pois já que era um ser em transição, agora é que tudo se misturava. Não é tão fácil se livrar do que se vai ser e do que se passou. Esta era a entrada de um terreno lodoso, barrento, como tabatinga de bairro antigo perto de rio. Ao entrar, afundou em sua trajetória, quis viver àquele lugar e teve medo de não sair, viu muita gente tão perdida quanto ela, misturada, e também suicidas, assassinos, estupradores, estelionatários, e sua própria sombra. Sim, para além de um Outro Terrível que já foi - objetificado para sustentar um ódio palatável, um ser fora de si - viu o quanto todos eles faziam parte dela, já que pensava "todos somos um".  Viu que sua

Gerda: APARENTE PROTEÇÃO

Gerda tinha em seu peito muitas portas, pensava que ali era uma espécie de trem fantasma, cada porta uma múmia, uma bruxa a pular no caminho dos visitantes, pois era isso. Para Ela quem se aventurava a entrar em seu peito era visitante. Isto é, desde o último acontecido.   A transformação pela qual tinha passado deixou um rastro de dúvida a pular em seu juízo, já problematizava até a existência deste: juízo pra quê? Pra quem? Pra mim é que não tem função, nunca teve. O último acontecido transformou-a em um casario daqueles portugueses, presentes na Belém do Pará e na Belém de Portugal, àqueles arrodeados pelo tempo, cheio de cheiros e camadas, sons, silêncios e texturas.   Ela abriu e fechou as portas, começou a ser a chaveira, ou melhor, zeladora de sua própria vida. Passou a compreender que seus primeiros respiros para a liberdade plena não passavam de afogamentos. Dizer é agir, por certo. Mas dizer por dizer, dizer como quem se mostra era muito pouco para uma mulher como Gerda.

Gerda: SELF EM TRÂNSITO

De uns tempos pra cá Ela mudou completamente. Tinha um casamento meia boca, dizia entender de amor, dizia sempre alguma coisa nova de amor. O amor era como um gelo a derreter em sua boceta quente. Diziam que era uma mulher de dar medo em qualquer um e Ela alimentava esse mito, falava sempre de relações amorosas que nada tinham a ver com o cônjuge em questão. Adorava contar de seus amores, um mais gostoso do que o outro, mas sempre na terceira pessoa. Quadro de Gerda Wegener (1986-1940) Um dia assumiu que estava com problemas conjugais, com um sorrisinho blasé , como se não fizesse parte daquilo. Dizia que talvez ele tivesse outra e que ia acabar com aquela porra enquanto dava uma talagada no copo grande de cerveja. Bebia como ninguém. Esse contraste deixava todo mundo doido e turma fazia um bolão pra saber com quem aquela mulher ia descontar a raiva do marido, não era possível que ela não ia fazer alguma cagada. E ra o mistério em pessoa. Os homens se mostravam muito s

Ficção de todo o dia VI

Deixa eu te contar essa. Uma vez eu pedi um Glória a Deus lá na reunião. Todo mundo calado. Eu pedi mais uma vez: eu quero ouvir bem alto, agora é pra falar com toda a fé que tem no peito, bora lá, Glória a Deus. Todo mundo calado.  Aí eu comecei a ficar puto.  Mas o senhor meu Deus sabe das coisas, mandou um mensageiro divino assim do meu lado e professei uma parábola que nem eu sabia.  Vocês conhecem Malaquias? Que era filho de Zacarias, irmão das três Marias e do Golias, filho de uma das tias, não sei qual, mas que era parente de terceiro grau de Jesus?  Fico todo arrepiadao só de falar. Pois bem, ele vinha andando pelas oliveiras sozinho, naquele caminho por onde passou Judas, vocês sabem a história, num silêncio quando de repente ouviu: por onde anda teus pensamentos Malaquias, filho de Zacarias, irmão das três Marias e do Golias, filho de uma das tias, não sei qual, mas que é parente de terceiro grau de Jesus, não sabes que sempre deves andar em oração e glorificando a D

Ficção de todo dia V

Ela me disse uma vez que preferia morrer do que ter que deixar aquela casa pra todos os filhos, tu acreditas? Credo mana, quem te disse isso? Eu ouvi da boca dela, não mandou recado, te juro. Meu queixo quase caiu quando falou isso. Mas ela vai ter que morrer pra casa ir pros filhos, né? Sim, mas tu entendeste o que ela quis dizer, né? Entendi, quer levar a casa pro túmulo, isso porque foi ela que pariu, valha-me Deus. Quando os meninos eram crianças ela dava de cipó neles, os bichinhos pulavam o muro de casa fugindo dela, uma vez deu com uma colher quente na cabeça de um zinho lá que até hoje tem as marcas daquilo... Eu hein, tem gente que não nasceu pra ter filho... É, mas a vida dela não foi fácil também. Contou pra mim que os meninos só faltavam deixar ela doida, tinha um que até botar fogo na cama dela botou. Sangue de Cristo. É, diz que esse que fez isso era igualzinho a ela, os outros meninos tinham até medo dele, pulavam o muro também pra fugir desse menino... Será que

Ficção de todo dia IV

Quando eu era pobre tinha que dividir um pão pra dez! Lá vem a senhora contar mentira pra cá... Tu não acreditas? Aaaaaah, tu não sabes o que é um couro. Como assim? Nunca ouviu essa expressão? Eu não. Um couro é quando a gente diz que a nossa pele fica curtida - que nem de boi - de tanto arder, a fome arde nas tripas, sabia? Arde nas tripas, já dizia a minha mãe. Toda vez que eu dizia que não queria aquele pão velho ela me dava um cascudo e dizia essa frase, parece que sinto a aquele cascudo,  daí ela pegava o pão e a gente dividia. Mas a vovó disse que lá no interior do Marajó tinha fartura, vocês podiam pegar fruta no pé da árvore e faziam guerra de taperebá, que até estragava na rua, tinha piquiá pra caramba e vocês davam até pra porco, fala a verdade... A tua vó tenta melhorar o nosso passado, mas não era bem assim, eu me lembro que quando a gente queria comer um pedaço de carne, tipo fígado, ela dizia: te contenta com essa caça moída aí. E sabe o que era? Era paca, que depois