Gerda tinha em seu peito muitas portas, pensava que ali era uma espécie de trem fantasma, cada porta uma múmia, uma bruxa a pular no caminho dos visitantes, pois era isso. Para Ela quem se aventurava a entrar em seu peito era visitante. Isto é, desde o último acontecido.
A transformação pela qual tinha passado deixou um rastro de dúvida a pular em seu juízo, já problematizava até a existência deste: juízo pra quê? Pra quem? Pra mim é que não tem função, nunca teve. O último acontecido transformou-a em um casario daqueles portugueses, presentes na Belém do Pará e na Belém de Portugal, àqueles arrodeados pelo tempo, cheio de cheiros e camadas, sons, silêncios e texturas.
Ela abriu e fechou as portas, começou a ser a chaveira, ou melhor, zeladora de sua própria vida. Passou a compreender que seus primeiros respiros para a liberdade plena não passavam de afogamentos. Dizer é agir, por certo. Mas dizer por dizer, dizer como quem se mostra era muito pouco para uma mulher como Gerda. Era preciso fundamento, um dizer fincado na ação, precisava de mais portas para abrir, tantas certezas sem verdade lhe deixavam vazia, oca de vida. Não, não merecia isso.
Mas o que fazer com tanta porta aberta? Como vou usar a chave certa? Onde guardar tanto peso? Meus bolsos já foram furados por tantas coisas, mas seu eu não quero mais levar, como vou caminhar?
Ela se deu conta da enrascada em que se meteu, para quê foi buscar uma transformação tão brutal? Descobrir a si mesma? Não sabia que esse caminho já tinha resultado na história da humanidade, deu filosofia, outras teorias, não deu em nada. O que procurava estava mais e mais longe.
Caminhei tanto, abri tanta porta nesse meu trem fantasma e me encontrei muitas vezes, o que mais vou encontrar? Outros espelhos? Espera, logo ali tem um lugar, mas não dá muito pra ver, tenho que achar algo para abrir esse caminho, minhas mãos estão desarmadas, meus olhos estão entorpecidos, cheios de esperança, cansados também. Calma, agora consigo ver, bem embaixo da aparente proteção está escrito: Corpo. Mas esse eu já conhecia.
Será mesmo, Gerda? Será que que já mergulhaste nesse limbo íntimo em que resides todo dia há milênios? Tantas eras, esperas, e mais esperas por um outro que és tu. Isso até onde sabes, vai por mim. Há reentranças e passados e memórias escabrosas, por que não dizer de tortura e morte, sangue mesmo, que escorre liquefeito, mas invisível por todos os teus poros, esses que pensas só servirem para o teu prazer. Te digo deste outro lugar, outro tempo obscuro, mas não menos poético, vais saber tudo na sua devida hora. Respira e espera.
Como, então, manter uma vida sã diante do que você me disse?
Não sei, aliás, eu sei, mas tu vais ter que descobrir. Eles me falaram que é para te dizer apenas isso. Viva. Não se mate que é pior.
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