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Artemísia Gentileschi. Susana e os velhos, 1610. Óleo sobre tela, 170×121 cm |
Gerda abriu a porta do medo, lá estavam presentes projetos perdidos, falta de consciência e ombridade, letargia, ausência de vigor e caminhos de expansão, injustiças. Para seu espanto, percebeu que sentimentos nem tão primitivos também estavam ali, pois já que era um ser em transição, agora é que tudo se misturava. Não é tão fácil se livrar do que se vai ser e do que se passou. Esta era a entrada de um terreno lodoso, barrento, como tabatinga de bairro antigo perto de rio.
Ao entrar, afundou em sua trajetória, quis viver àquele lugar e teve medo de não sair, viu muita gente tão perdida quanto ela, misturada, e também suicidas, assassinos, estupradores, estelionatários, e sua própria sombra. Sim, para além de um Outro Terrível que já foi - objetificado para sustentar um ódio palatável, um ser fora de si - viu o quanto todos eles faziam parte dela, já que pensava "todos somos um". Viu que sua sombra era tão podre quanto de qualquer merecedor de seu asco. Era também uma pária, era algoz. Engoliu a seco. Repetiu. Eu sou pária, eu sou algoz, pelo menos nessa experiência do agora.
Porém, Gerda continuou a caminhar por entre àquela tabatinga de uma memória anterior ao que conhecia, afundou seus pés volta e meia, cada poça um aprendizado, uma cicatriz que era obrigada a curar, percebeu que própria terra d'água era o remédio, adubo e alimento. Algumas feridas demoraram a cicatrizar e o pus brindava com sua beleza cintilante e doída, e mais tempo se detinha em cada poça, mais profunda e profunda.
E no meio daquela fundura, ela vislumbrou uma companhia que parecia cada vez mais se aproximar, causando um certo incômodo, primeiro sentia sua presença em ecos, um som por meio de um sopro: "ggg". E correu.
A presença vinha acompanhada de conforto, algo que conhecia, e um desconforto ao mesmo tempo. Um sopro, um feixe de luz, e o som que a essa altura já era desesperador. E correu mais rápido.
Aquilo que ela conhecia e não conhecia foi se aproximando, seu coração já batia descompassado e a sensação que era sua velha companheira deu um oi: crise de pânico. Suor, pulsão de morte, paralisia, medo absurdo, músculos retesados, seu corpo iria parar naquele lugar desconhecido, agora sim era o fim.
Quando chegou mais perto, ela fechou os olhos, era única coisa que podia fazer já que seus membros estavam inertes, mas a luz conseguia ultrapassar suas pálpebras, até que sentiu um toque em seus ombros. Gerda desmaiou.
Passados não se sabe quanto tempo, ela ainda com os olhos fechados, tomou a atitude de abri-los e não conseguiu, tentou mais uma vez e nada. Então, se concentrou em seus músculos e ossos, e foi relaxando, àquela luz ficando mais forte como se estivesse respondendo ao esforço dela, com paciência e perseverança foi soltando cada membro, pegou um pouco da tabatinga e passou em seus chackras, ela era sua própria cura.
Passado mais um tempo percebeu que a luz parou de incomodar e viu para além de suas pálpebras uma figura conhecida, delineava um corpo familiar, íntimo na realidade, naquele momento, deitada na lama interior, Gerda consegui pela primeira vez ver de fato sua luz. Pensou: foi melhor não ter escolhido a morte, pelo menos por enquanto. Sua luz tinha cores diversas, queria aprender mais sobre tudo aquilo.
Gerda enxergou a próxima porta.
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