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Gerda: A PORTA DO CAOS


Estava com a vida num marasmo que não entendia. Tinha começado a passar por uma série de transformações que estavam doendo até aquele momento, mas tudo parecia calmo, demais até, pensava. A sensação louca que tinha era de estar na beira de uma praia vendo a mansidão do mar, mas seu coração tinha uma mania chata de antever e palpitar descompassado, o que pensava ser arritmia era uma intuição de arrancar paz, era de família sua avó dizia, “pajé bom é assim mesmo”, odiava àquelas frases da matriarca, mania de me assustar, eu hein. 

Mas era assim, seu peito palpitava, sentia que ia morrer de falta de ar, seu corpo paralisava de olhos abertos, e tinha uma miração. Ia acontecer de novo. Viu uma onda do tamanho de um prédio vindo em sua direção prestes a quebrar na sua cabeça, seu corpo começou a somatizar e suou dois litros inteiros, a água escorreu debaixo de seus seios, a boca seca e o desequilíbrio a fez cair no chão. Que merda é essa, é crise de pânico só pode, a onda tá se aproximando, corre bando de caralho todo mundo vai morrer aqui olhando, corre, corre, corre, estão todos cegos? Eu quero sair daqui, socorro, eu não quero morrer.

Acordou e não sentiu mais seu corpo, percebeu que a cidade estava no fundo de uma água azul, parecia cor de oceano, não, aquela não era a água de seu lugar, que sensação ridícula de estar em um filme hollywoodiano, só faltava agora aparecer mais uma daquelas malditas portas diante de tudo aquilo. Andou pela cidade e todos agiram como se sempre tivessem habitado o fundo das águas, será que só eu tô vendo essa merda, o que tá acontecendo com essas pessoas? Por que parece que meu nariz tá entupido e ao mesmo tempo minha respiração tá melhor? Andou pela rua e viu várias mulheres com cortes abaixo da cabeça, parou para observar, aquilo estava ficando bizarro até para ela, parecia um livro do Cortázar isso sim, pegou nos cabelos e sentiu uma textura estranha na cabeça, que porra é essa... sua memória embaralhada foi direto para a infância: conchas. Como é que isso grudou no meu cabelo? Procurou por um espelho nos carros, viu que seu cabelo era todo feito de conchas e seu pescoço tinha vários cortes, mas não tinha sangue, eita que são guelras, sentiu o ar entrar em seu corpo em meio a toda àquela água, respirou profundamente para se certificar, eu sou a própria distopia, que clichê.

Olhou para o fim da rua de onde veio a onda, agora tinha uma porta antiga, de casarão nos moldes da arquitetura dos colonizadores. Parou no meio da rua. É isso mesmo? Eu já devia estar acostumada... Caminhou lentamente, ficou pensando no que tinha feito para passar por aquilo, veio todo o sentimento de palmatória do mundo, de medo irracional, de ódio incontido, de coitadismo, de coragem insana, resignação nova era e até de coach espiritualista, tudo numa só cabeça a ponto de fundir. 

Parou de novo, agora diante do inferno da porta e ponderou as alternativas que tinha: ficar aqui no fundo de mim, nessa cidade, ou encarar um caos maior que esse aqui? Respirou o mais profundo que podia, a porta parecia mais pesada do que de costume, entrou. À medida que caminhava, seu corpo ia perdendo as características do fundo das águas, agora tinha dificuldade de respirar, um banzo tomou conta de seu corpo, o caos era onde estava antes, sua própria casa, sua cidade, seu próprio corpo em colapso naquele tempo que parecia mais irreal do que nunca. Ela olhou para mim e para ti e perguntou: E agora? Nossa, esse tombo aí doeu, Gerda.


Colagem de Julia Lillard

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