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Gerda: SELF EM TRÂNSITO

De uns tempos pra cá Ela mudou completamente. Tinha um casamento meia boca, dizia entender de amor, dizia sempre alguma coisa nova de amor. O amor era como um gelo a derreter em sua boceta quente. Diziam que era uma mulher de dar medo em qualquer um e Ela alimentava esse mito, falava sempre de relações amorosas que nada tinham a ver com o cônjuge em questão. Adorava contar de seus amores, um mais gostoso do que o outro, mas sempre na terceira pessoa.

Quadro de Gerda Wegener (1986-1940)
Um dia assumiu que estava com problemas conjugais, com um sorrisinho blasé, como se não fizesse parte daquilo. Dizia que talvez ele tivesse outra e que ia acabar com aquela porra enquanto dava uma talagada no copo grande de cerveja. Bebia como ninguém. Esse contraste deixava todo mundo doido e turma fazia um bolão pra saber com quem aquela mulher ia descontar a raiva do marido, não era possível que ela não ia fazer alguma cagada. Era o mistério em pessoa.

Os homens se mostravam muito solícitos, sempre com umas palavras de compreensão, pro que ela precisasse eles estavam ali, tesos. Digo, de prontidão. As mulheres não ficavam atrás, sabiam que dali poderia sair qualquer coisa, com certeza uma foda dos sonhos. E salivavam por ela.

Todo mundo querendo saber mais. Até que o marido aparecia sorridente e levava a mulher pra casa. Não entendíamos nada. Todo mundo queria ir junto pra saber como era aquele sexo. Deve ser bom, né? O que tu achas? Eles devem revirar um ser humano... Tudo isso, será? Pra mim deve rolar só um franguinho assado se muito... 

Depois de alguns dias Ela reapareceu com uma cara de felicidade no happy hour: quê isso, mulher? Ganhou na loteria? Não, melhor, encontrou um de 24 cm mole, fala a verdade! Melhor, encontrou uma Gilda só pra ti? Não, só estou satisfeita com a vida ora essa. Mas por quê, mapô?

Acho que estou apaixonada. Por quem? Conta tudo... Fui fazer um ménage a trois com algumas pessoas... daí encontrei essa que eu não conhecia bem. Pessoas? Se tinha muita gente era bacanal, mapô. Não entendeste, é que uma das pessoas eu conhecia, a outra de fato não. Nos conhecemos direito na hora daquele "vamo ver". Foi incrível. É louca, insaciável, me apaixonei de verdade, me transformei. 

E quem é essa pessoa tão especial? Estávamos furiosos. Quem foi esse ser humano que numa noite passou na frente de todo mundo e fez a gente comer poeira na corrida da foda de ouro?

Quase caímos pra trás quando Ela apresentou a pessoa. Realmente, era diferente de tudo o que estávamos esperando, falava de uma maneira envolvente, íntima, contava piadas, dona de si, uma gargalhada safada e muitas histórias com detalhes picantes, era um tesão mesmo. Todos ficamos apaixonados.

Eis que aquela dúvida martelou em nossas cabeças: o que será que aconteceu e como é que por tanto tempo que a conhecíamos não tínhamos nos dado conta de quem era de fato aquela outra Ela de si mesma? Por que demorou tanto para sair de dentro daquele corpo casca? 





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