Pular para o conteúdo principal

Bernardo Sayão

No meio do meu caminho
tinha um rio barrento
está prestes a virar concreto
sem cor, sem vida, sem água
um triste rio de cimento
nele há vestígios de gente
moradores da vala comum
cruel do esquecimento

uma boneca sem olho, restos de casa demolida
uma garrafa boiando sem esperança
crianças ao redor do que já foi potável
besta suspiro de vida

urubus sobrevoam alegres a feira
um misto de podridão e comida
frango abatido, carcaça de boi,
escama de peixe pelo chão caída

caminho mais um pedaço
vejo o mercadinho Fé em Deus
mas não vejo nenhum regaço
será mesmo que olha pelos seus?

um rio-mar se abre diante de mim
enquanto pescadores encantam
suas redes para tear os peixes
sorte navalhada no banzeiro,
ferida talhada nos corpos destes

vou em direção ao centro
a imagem muda rapidamente
ruas limpas, arborizadas
nem lembra a dor daquela gente
que engole sapo, e vive na merda
mas comemora, de só agora
ter o básico saneamento


Carola







Comentários

  1. Carola,

    margens de largas imagens desfilam no teu texto. restos mortais, incestos de lixo, líquidos umbrais, canais infectos. tua verve se afia mais e mais.

    beijo,

    r

    ResponderExcluir
  2. Renato,

    Crueza e beleza são bem mais do que sufixos idênticos. A raiz explica mais do que qualquer abstração que se queira ter.

    Abração,

    C.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Poetas Marginais e Geração Mimeógrafo

Estamos mais do que acostumados a ter acesso a livros e e-books que muitas vezes nem sequer passam pelo mercado editorial, mídia, crítica literária, universidade   ̶  isto é, espaços responsáveis pelo sucesso de público e sobre a inclusão da obra no cânone literário   ̶ ,   mas que se tornam fenômenos de leitura   e podem influenciar gerações futuras. Não, não estou falando de nenhum sucesso da web em blogs, sites, tumblr, fanzine virtual ou algo do gênero.  Estou falando dos poetas marginais e da Geração Mimeógrafo. Para você que acha que esses poetas vieram diretamente da cadeia, ou mimeógrafo é um bicho, uma doença ou um tipo de droga, explico.  Esses poetas começaram a produzir seus escritos a partir da década de 70 e se estenderam até 80 – alguns teóricos consideram apenas a década de 70, porém pela produção literária que até flertou com o movimento punk outros também consideram a segunda década –, ou seja, compreendidos nos anos duros da ditadura militar, em os

Só se sabe que aconteceu

Filme Antes do amanhecer(1995), de Richard Linklater Ele a convidou para um encontro. Conheciam-se há bastante tempo.  Sabiam que existia uma sintonia, mas algo os impedia de uma aproximação mais verdadeira. A desculpa dele para se verem era a solidão da vida de solteiro: não quero ficar em casa, “tá” batendo a depressão, cansei de assistir TV, “bora” fazer alguma coisa, tomar umas de leve... Ela estranhou a atitude dele, que era sempre bem tímido, engraçado, mas tímido.  Tudo parecia não querer esse encontro, ela inclusive. Estava receosa do que podia sair daquele dia. Já tinham se aproximado antes, mas ela fugiu. Sentia as pernas moles quando ele se aproximava, agia feito boba. Ora essa, tenho trinta e cinco anos. Como é que um menino desses consegue me deixar assim? Enquanto se encaminhava para encontrá-lo descobriu que não havia ônibus na cidade: quê isso minha gente, será que vou ter que ir a pé? Merda, vou chegar toda suada. Era mês de julho, ela morava na periferia

Gerda: A PORTA DO MEDO

Artemísia Gentileschi.  Susana e os velhos, 1610. Óleo sobre tela, 170×121 cm Gerda abriu a porta do medo, lá estavam presentes projetos perdidos, falta de consciência e ombridade, letargia, ausência de vigor e caminhos de expansão, injustiças. Para seu espanto, percebeu que sentimentos nem tão primitivos também estavam ali, pois já que era um ser em transição, agora é que tudo se misturava. Não é tão fácil se livrar do que se vai ser e do que se passou. Esta era a entrada de um terreno lodoso, barrento, como tabatinga de bairro antigo perto de rio. Ao entrar, afundou em sua trajetória, quis viver àquele lugar e teve medo de não sair, viu muita gente tão perdida quanto ela, misturada, e também suicidas, assassinos, estupradores, estelionatários, e sua própria sombra. Sim, para além de um Outro Terrível que já foi - objetificado para sustentar um ódio palatável, um ser fora de si - viu o quanto todos eles faziam parte dela, já que pensava "todos somos um".  Viu que sua