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Ficção de todo dia I

Ele tentou subir a escada, deu dois passos pra frente e um pra trás. Foi o suficiente. Um dente, um braço e uma cabeça quebrada. A garapa quente escorreu pela rua. 

Que barulho foi esse? Vai lá olhar! Eu não, vai que é tiro, deusolivre. Tô curiosa, vai logo. Vai tu, eu hein. A garapa escureceu. Escureceu. Corre menino, chama o Samu. Cutuca ele. Eu não, vai que a Polícia pensa que fui eu. E tu não tava do meu lado de noite? Até onde eu lembro sim...

Conta essa história direito. Eu tive um sonho sabe, não sei se acordei, sei que ouvi uns gritos, era uma mulher que tava dizendo que ia embora e não queria mais saber de nada, tava cansada daquela vida, todo dia era aquela mesma história: ela ia trabalhar e quando voltava ainda tinha que aguentar bafo de cachaça de velho vagabundo, que qualquer dia desses ele ia se dar muito mal por causa disso, todo dia orava a Deus pra dar um fim nesse sofrimento. E gritava: misericórdia, sangue de Cristo tem poder que tu vai ter uma lição um dia, vai ter.

Ela tava pedindo pra Deus matar ele? É isso que tu tá me dizendo. Eu não falei isso, cruz credo. Tu leva tudo pro lado ruim. Eu? Tu que botou o nome de Deus no meio do papo. Deixa eu continuar. Tá, fala. 

Ela gritava: tem misericórdia de mim, senhor. Ele dizia: quem manda na minha casa sou eu, cala boca que eu não tô bom hoje. Dou-te logo murro no meio da cara pra deixar de ser enjoada, porra. Só sabe reclamar da vida. Quem manda na minha casa sou eu. Ninguém manda em mim, nem Deus, porra. E para de chorar que eu tô ficando puto com essa ladainha. Ela: quer saber de uma coisa, eu vou embora, eu trabalho, não fico coçando o saco o dia inteiro como tu, enchendo a cara com esse bando de macho aí da rua... Tá insinuando alguma coisa, sua filha da ..., meto a mão na tua cara. Misericórdia, eu vou embora, rogo a Deus que te dê um castigo. Velha safada vai rogar praga pra outro, eu hein, tá amarrado.

Aí acordei contigo me cutucando, será que eu sonhei ou é o nosso futuro?

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