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Bem-vindo ao estranho mundo

*Por Vicente Franz Cecim

Em algum lugar do estranho mundo
mãos se tocam em silêncio branco
Ah o encanto da carne

quando esquecida é a existência do deus
que causa a dor


Uma ave vai pousando em seu ninho,
traz nos olhos os espantos do dia que se acaba, se acaba

Mas a tarde nos serena, com a promessa
de que logo vai anoitecer
para novamente nos tornarmos sombras, nos tornarmos sombras,

nos tornarmos sombras


Devolvidos aos ninhos escuros, escuros, escuros


Ah como nos assusta caminhar sob um sol 
A este lado da esfera
ainda não veio o tempo do repouso  A terra geme,
a fatigada, fatigada

Os homens nos caminhos do crepúsculo da raça

perderam seus olhos
nos cílios pesados de bronzes antigos  As estátuas com nódoas de vergonhas,
a vergonha, a vergonha 

                                                                      
Nunca mais tu ouviste
o sino que chamava os gestos brandos do fundo
do templo


Ah a sina
do efêmero encarnada em tudo que se move
à nossa volta
Mas tu ouves num inseto de outono o Inseto
do outono
As folhas que se fecham sem desprezo

Num ramo que se parte e cai sozinho,
nenhuma força negativa pousou neste inverno


No estranho mundo, alguém está deixando
o pequeno porto
em seu leito de morte,

e isso nos faz mais lentos do que o cedro transformado em leito macio

porque de madrugada alguém, que será outro,
acaba de nascer na casa verde ao lado


Ah o ir e vir dos viajantes pelas estrelas, as estrelas,
as estrelas
Como tem poder um gesto
branco branco
quando vêm do fundo na noite os silêncios
em que nasce a flor a rubra da ternura
           
À noite a noite a noite

banhará as frontes que sonham serenas o sereno
Um cão se encosta ao dono
e ao seu odor humano

Ah como é lento este aprender a semelhança

entre a pata do animal e o gesto humano


Misteriosa, uma estrela agora desce sobre o bosque
dos destinos
A filha dos pântanos se agasalha em folhagens negras
O sol tem um ritmo de sangue,
anunciando um novo despertar do mundo

Ah como renasce este outro lado da terra, a dourada, para a luz
Um emblema de paixão te é dado a cada dia
E o vinho está servido nos sentidos

para ser bebido por aqueles que tiveram as suas mãos feridas, feridas,
as feridas



Claro e escuro é o mundo
Claro e escuro é o mundo



Ah o espanto daquele que desperta após um breve sono  O anjo, em ossos
e sangue
Se adormeceu no fim da tarde
e abre os olhos na penumbra
que não sabe
se anuncia um anoitecer de pedra
ou ainda a areia as auroras da vida

Por algum tempo, permanece mudo
E não pode se dizer o que virá depois, se luz, se treva

                                                                      
Ah a garganta quando quer cantar uma canção de pura luz
                                                          
Ah o irmão perdido  Ah a voz que prefere calar
diante do crime do irmão 


Em algum lugar do estranho mundo
mãos se tocam em silêncio branco,
olhos se olham em virtude azulada,
peles se roçam na intimidade dos amigos


Ah os ninhos que se constrói com o afagado
e o murmurado


Quem são aqueles dois que agora cruzam a ponte

entre suspiros e brumas,

ignorando o cão de ferro que late em seus calcanhares


Levando um peixe de ouro, o pescador de sonhos
Ei-lo que vai voltando para o recanto do estranho mundo onde ergueu sua casa
de palha e centelha convivendo em paz


Ah a ave distendendo as asas
no amanhecer do ninho, o ninho
para reiniciar a aventura da leveza

Como é leve esta pedra no caminho
                                                                      
Como é longo o culto à árvore
em que se enterram as raízes da família
e o choro da criança pela primeira vez


Não tires a tua mão da claridade

da minha mão cansada que repousa em ti,
para ocultar na sombra
                                                                      
Ah

não esperes o receio
para te abrigar em meu peito, diz a voz branda
e longe uiva a fera do adeus


Quem são aqueles que atravessam a ponte
sem temer o cão de ferro, a vida
E por que ainda está ausente o peixe

As planícies de escamas, ao longe, ao longe ao longe Mais uma estrela
caiu dos teus olhos


Ah os que caminham juntos sobre as águas
e a paciência do homem com a madeira
para fazer a casa e a cama

onde o recém-nascido acaba de chorar pela primeira vez

enquanto a vida também constrói para ele
uma ponte
e um latir de ferro em seu calcanhar
apontado para o céu,
enquanto o sangue verde lhe desce à cabeça
enquanto o olhar da mãe de lábios lívidos


Ah o nome que daremos a tudo isso
que nos envolve,

e que chamamos vida,

quando voltarem os tempos perdidos
ao regressarmos aos ninhos de verão,
dois a dois
atravessando a ponte,
pisando as marcas dos passos dados pelos anos puros
                                                                      
           
Aquela que tece a lã generosa
                                                                      
porque crê no balido do amigo,

ah
como a chamaremos depois que cessar nosso primeiro choro
e a Casa ao lado for a nossa casa?


Ah o encanto da carne

quando é esquecida a existência do deus
que causa a dor


Ah o encanto da dor

quando esquecida é a existência do deus
que causa a carne



Mãos se tocam em silêncio branco

em algum lugar do branco e estranho mundo


*Vicente Cecim é escritor, cineasta e jornalista. Nasceu e mora no Pará. Já ganhou o prêmio da APCA ( Associação Paulista de Críticos de Arte) pelo livro "Viagem a Andara". E seus vídeos produzidos desde a década de 70 estão disponíveis no seu canal no vimeo





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