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Por Adriane Henderson*


Café de Nuit, Arles, P. Gauguin, 1888.


Qualquer dia desses vai ser preciso forçar a memória para lembrar o teu nome. Provavelmente, serrarei os olhos e deixarei que as rugas em minha testa traduzam o esforço por uma imagem qualquer que remonte tua fisionomia.

Enquanto calço um chinelo velho e a televisão espalha seu ruído pela casa para que eu não me veja tão sozinha, vou lembrar o ruído do teu sorriso e do tempo que ele passou me perseguindo pelas esquinas, na expectativa de que um dia irias atravessar a rua ao meu encontro.

Numa tarde quente de dezembro vou me distrair enquanto espero o sinal fechar e vou lembrar da tua voz, sempre um tom abaixo do teu timbre, me sussurrando aos ouvidos: “menina, menina...”.

Talvez um dia conte sobre aquela noite, numa mesa de bar, para os amigos. Então, vou saber que é uma lembrança desbotada pelo cheiro de vinho e suor que escorria da nossa dança. Vou retocar com tinta fresca os detalhes, refazendo sempre meu souvenir.

Um souvenir de uma noite de quase verão da minha juventude quando tudo é o agora e o futuro cena pra depois. Um tempo em que o meu peito se dobra na batida de um samba e dança a se espalhar pelo salão, alegre e distraído como se fosse um folião que, feito de ser sozinho, se encontra em meio à multidão com os olhos arregalados.

E eu tinha sempre os olhos arregalados. Mas naquela noite, justo naquela noite, eu estava distraída. E tu não chegaste invadindo, porque assim eu teria tempo para o susto. Apenas chegaste.

Mas o dia nasceu. O dia sempre nasce. E tu, com tudo o que era teu, te esvaíste como quando a gente acorda com sensação de sonho bom, mas não consegue lembrar dele. 


*Adriane Henderson é Terapeuta Ocupacional e atriz. E é minha amiga do saudoso colégio Santa Rosa.

Comentários

  1. Dri, lindo texto! li, reli e o prazer da leitura não me deixa. Quero mais.
    É assim: "De repente, não mais que de repente"

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