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Eu podia estar roubando, eu podia estar matando

 O poeta pobre(1839) de Carl Spitzweg


Ela pode ser encontrada em qualquer lugar das cidades ou das florestas. Pichada pelos muros, perdida em qualquer festa. E isto não é blasfêmia, é barata, eu juro, o preço são quantias módicas de um sorriso, um aperto de mão, um afeto, bons causos, gargalhadas, carinho de criança, beijos dos apaixonados, certeza dos amantes, corrida de belas pernas, olhares insinuantes, adolescentes desconcertados, vida tragada pelo homem, homem tragado pela vida.

E tende à ralé, na essência, não traz o rebuscamento das coisas, as ligações bem-ajambradas conseguidas pelos conectivos, conceitos fechados ou abertos elaborados por filósofos importantes e/ou cheios de si. 

Nela os sentimentos humanos são plebeus, nem sempre doces, nem respeitam aos padrões do cânone. Tem muito mais razão de ser nos uivos dos bêbados cantadores pelas amadas que não são suas, mães que esperam filhos que nunca voltam, amantes que não ficaram juntos e filhos que não conheceram seus pais do que nas liras apolíneas que nada têm de real, repletas de felicidade e inteireza.

Tem um quê de melancolia, por vezes, tristeza, mas sempre a sinceridade de um mentiroso convicto. Pinta múltiplas quimeras, mas nunca vê o seu final, ele sempre está contido em seu fruidor, ou melhor, leitor. 

O poeta faz dela - a poesia - sua meta, nela tem um pouco de tudo, letra minada, um pouco do mundo, e muito do nada, do verso mais profundo ao mais canalha.

Já eu – que não sou esteta –, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou dando uma de poeta...

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