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À Natasha



                                                                                                                                      Por Diego Diniz*
(por ter me apresentado Sylvia Plath)

Queria chorar, mas não consigo. Queria minha vida dilacerada e teu nome tatuado no meu punho esquerdo, mas não sou tão panaca. Eu queria em primeiro lugar saber teu nome para depois entregar tudo nas mãos da Loucura.

Saber teu nome acho que sei, pelo menos era Natasha. Mas do que adianta nos dias de Zuckerberg, Jobs & Associados saber só o nome e não te ter “add’ em canto nenhum? 

- “Não é assim que as coisas funcionam mais, Natasha.”

- “Não vou confiar em você enquanto você não fizer um feice.”

Lembra disso?

Lembra que eu também não sou nenhuma puta para tu me procurares quando der na telha?

Lembra? Foda-se, é o que eu digo.  

Foda-se, foi o que disse quando te vi dobrar a esquina sozinha, sem cigarro aceso para espantar as prováveis panteras da meia-noite.

“Segura, segura, segura” – um apresentador canastrão gritava na TV do vigia. Eu te segui por trás do barulho infernal da plateia, gelado de terror.

Depois da Márcia Imperator fingir um orgasmo e me provocar um baita tesão, devo contar como tudo isso aconteceu, aliás, já estava me adiantando e colocando o carro antes dos bois:
Eu queria chorar, sim, mas depois de João Klebão e da decadência do disk-sexo o melhor que posso fazer é admirar histórias fraudulentas e tripudiar da realidade.

Vinha de duas semanas acumulando porra, isso é verdade também. Mas eu não tive tempo de lhe contar que meus testículos sofrem de uma fragilidade capilar denominada blue balls – quando eu me permito acumular muito, eles produzem uma dor que diz: vai.

Não tem jeito, tenho que bater uma bronha ou fico com a sensação de que meus rins vão sair na próxima mijada. Uma olhada estranha e a mulher vira no ato um objeto urgente de prazer. É que aos 20 fiz a promessa de não bater mais de uma por semana. Carrego uma superstição que me foi passada por um padre...

De posse da informação (não sei como) de que eu havia entregado corpo, alma e aulas de futsal às tentações simplórias da masturbação absoluta, Frei Frank me alertou: meu menino – não lembro onde ele me tocava, mas acreditava nele e até hoje acredito nas fotos do Texas – quem se masturba muito acaba esgotando cedo demais  a semente.

Quê? É isso mesmo: acredito piamente que todo homem tem um estoque limitado de gozadas, e quem abusa delas, inevitavelmente, broxará mais cedo. Assim: se a você é permitido gozar uma vez ao dia até os setenta anos, mas tendo abusado desde os doze numa média de 3 a 4 por dia, atenção, você baixou sua expectativa sexual dramaticamente e é melhor começar a estocar prazer.

-... Como se isso fosse mesmo possível.

De todo modo, nunca sei muito bem como pedir desculpas...

Chega a sexta-feira e, bem, adolescentes se fingem de fumantes experientes e não param de bater o cigarro freneticamente. Sem necessidade ainda, me destinaram à solidão daquela madrugada de sexta, ainda cedo, com um telefone errado e um “me add no feice”.

- “Garotas miseráveis se fingem de puras para os desconhecidos... cidade pequena é mesmo uma merda.”

 - “Concordo”, você dizia. “Não há mais cadelas se você não fuçar no fundo do poço.”

E nessa província pós-moderna o tal fundo do poço, onde hoje estão as ratazanas a se reproduzirem efusivamente, é o chat da UOL. 

Bichas, balofas solitárias, viúvas, desempregadas, histéricas, ratazanas – e você, Natasha... enfim, o cardápio é variado.

- “A UOL é a principal responsável pela segunda revolução sexual.”

- “Pode crer.”

- Vida idiota na madrugada... – desliguei a TV.

Local: em frente à Tágide, 4 da madrugada. Mentira inicial (sua): tô com medo e nunca fiz isso. Verdade inicial (minha): relaxa e engole. 

Meia hora depois dividíamos uma garrafa de Cantina da Serra junto aos emos e demais camundongos da vala da Doca. Era o fundo do poço, literalmente.

Você me chamou de almofadinha e eu te apelidei de Hippiezinha da Triton. 

Você titubeou em cada peça de roupa, mas tirou todas. 

Estivemos aqui mesmo, no escuro do meu quarto.

Você implorou para que não fizéssemos nada, mas minhas “blue balls” continuavam azuis e eu acabei desperdiçando tudo antes de corresponder àqueles nãos mal ajambrados.

Você quis dormir ao meu lado, mas não tive muita paciência pro papinho com cigarro pós-foda...

Aliás, efetivamente, eu não comi ninguém. Meus testículos pareciam ter percebido isso e me cobravam pesado. 

Cuidei de pegar a chave e levar de volta, foi por aí... Éramos praticamente vizinhos pelo menos, mas a rua oferecia perigos.

Eu, um devorador de ratos, nem atinava que lidava com uma ratazana de classe.

E você – você lembra das atrocidades que falou pra mim?

***
Estava em absoluto estado de choque depois de vê-la partir com os peitos de fora na garupa de um mototaxista. 

Voltei com as pernas bamboleando, esgotado moralmente, minha cabeça explodia em sugestões:
Família desestruturada? Pai incestuoso? Tudo a culminar num vício repulsivo por trepadas com caminhoneiros & afins? Ou uma medida extrema para chamar minha atenção como quem diz: “olha a merda que eu vou fazer se tu não vieres me salvar dessa vida, seu veado”. 

Amante e corno de minha súcuba infeliz – como posso explicar a partir dessa minha moralzinha liberal e enfadonha? Impossível, impossível!

Natasha, ou qualquer merda que o valha, chegou bêbada no meu apartamento dizendo que me amava – um dia, apenas um dia após termos mergulhado de cabeça na vala da Doca com a cara cheia de vinho barato.

- “Eu te conheci ontem, sua maluca!”

Em seguida ela me mandou tomar no cu, disse que eu tinha a mesma “moralzinha de um terapeuta” e eu a expulsei de casa, evidentemente.

E essa crônica não é uma tentativa de homenageá-la ou de relativizar a minha mesquinhez. Bem, disso eu cuido no banheiro. Porque aqui vou tentar o indizível – e desde já aviso que falharei infantilmente.

Mas de qualquer modo não pretendo solucionar, nem dar cabo à imobilidade moral & cívica a que Natasha me condenou. Contento-me em aligeirar e afastar o idealismo dessa sucessão de fatos que se chama... vá lá, vida. Em última análise, espantos que não devem fugir sem serem devidamente nomeados.

- Lili...

Lili me mandou tomar no cu com os peitos de fora na garupa de um mototaxista – e eu tenho que seguir com a minha vida sem assimilar o golpe?

A realidade é a célula mater e a linguagem o único instrumento que sei manipular pra fazer o parto desse espanto, desse desconhecido que me preme, por ofício, a não agir com omissão, nem imprudência, nem imperícia. Isto é, depois de tentar dar um nome a um pecado inédito, voltar decepcionado – mas voltar. 

Voltar do parto de uma realidade ainda virgem de onde eu nasci pra retirar mentiras vitais.

- “Eu poderia voar, levar o caralho, ressuscitar, mas meu talento é mentir. O que posso fazer? O fingimento é a alternativa mais inquietantemente ética para se chegar à verdade dos meus sentimentos.”

Lili, quero dizer, os fatos que se fodam. Precisamos parir dramas em forma de bichos.

Um escriturário decadente, uma jornalista gostosa numa cidadezinha sem escrúpulos, uma barata – um ser fodidamente corrompido por uma atmosfera fodidamente corrompida, enfim – mas um ser cuja liberdade de ação e de ética, virtualmente, sobrevivem incólumes. É assim que eu quero você, Lili... não fuja de mim.

- Ah, Lili... eu não atravesso uma rua sem me iludir, sem me figurar em novos modos de existência... mal consigo manter a cara de pau pra fingir que nada está acontecendo. Será que isso vai piorar? Um aviso que valeria pra nós dois: nunca conheça seus heróis.

Bem, agora esse aviso não vale mais.
***

Mal assimilado o susto, pensei: bom, precisava mesmo conhecer uma maluca daquelas, mas não tem como eu manter um relacionamento minimamente fértil com uma mulherzinha histérica dada a ataques de prostituta infantojuvenil. 

Mas eu a perdoaria. Eu já perdoei. Tenho certeza de que ela foi abusada pelo pai. Pequenos sinais não faltam: Lili mora com o padrasto e tem pernas lindas. 

Embora eu ache que deveríamos usar de argumentos mais plausíveis para justificar nossa loucura, não deixo de supor que o padrasto devia ficar maluco com aquelas coxas.

Só queria encontrá-la pra devolver aquele “eu te amo” e levar um tapa na cara. 

Ah, Lili, esse teu nome... agora é perfeito para uma monstra sedutora, durmo e acordo esgotado quando tu me visitas, desde 1998. Agora que tu és real e vem toda noite até minha cama, vamos nos escafeder desse mundo. Vamos que no meio dessa negrura sejamos abduzidos por alienígenas chinfrins e mantidos numa redoma de cristal impenetrável. Hein? Adão e Eva de um planeta inóspito e sempre noturno. Eles nos observam: Adão e Eva de uma redoma de cristal de mais ou menos 20 por 20. Não seria o ideal?

Opa... – acabou a comida, Lili. Alimente-se de mim como sempre se alimentou (engolindo meu sêmen) e me permita dormir para esquecer que estou morrendo de fome. Lembre-se que a Ângela Bismarck recomendou ingestão de porra naquele programa de saúde que passava de manhã. Engula tuuudinho, não desperdice, estou pensando em racionar... 

Ei, eu não vou engolir a minha própria porra! 

Achei água: vamos sobreviver por mais um tempo, não tem jeito – eu é que não vou me suicidar. Acho que a razão pra eu não me deixar morrer de vez é que eu também não deixaria você se matar – e acredito firmemente no “vice-versa”, viu? 

Você deixaria que eu cometesse alguma atrocidade comigo mesmo? Você mesma cometeria alguma atrocidade comigo? Não, não vamos entrar em conceitos, aqui eles não adiantam nada.
Ah, sim... e nós que nos amamos tanto! 

Uma pergunta: aceita que eu rasgue com este cristal um pequeno pedaço da tua carne para eu me alimentar? Tô morrendo de fome e, de verdade, não quero engolir minha porra. Preciso de algo tóxico... a tua carne é perfeita. Outro dia eu te dou um pedacinho da minha, prometo.

- Isso... 

...Mas que ideia maligna, Lili, como tu és perversa! 

- Lili, tu é estranha!... Eles devem adorar te observar. Ainda bem que você já está grávida e eu não vou me dar ao trabalho de ter que gozar, fraco que tô, não confio que ainda tenha sustância nesse meu corpo exaurido. Tu acabas com ela todas as noites! Tarada... Mas se é pro nosso filho, tudo bem. Quando ele nascer, o devoraremos. Sim... Nós vamos sobreviver. 

Toma, Lilizinha, leva esse pedaço de carne da minha costa que o menino aí dentro deve estar precisando muito. Ah, finalmente! Finalmente ele nasceu! Eba! Vamos comer! Mas temos que estocar algumas partes desse pra fazer outro. Há sal e gelo ali pelo canto. Um dia poderemos, quem sabe, até pensar em criar um desses que a gente come. Agora eu me sinto forte. Eles que nos observam adoram nosso instinto de sobrevivência e criam metempsicoses conosco. Será que eles pensam que são nossos deuses e, nós, formas de vida maníacas presas numa redoma de cristal? Será que o que eu tomo por sobrevivência e pecado eles acham que é... sacrifício? Mais que comédia! Sabe, já pensei em fazer com uma das crias e – mais cedo ou mais tarde – oferecer uma delas à ira deles, se é que eles têm mesmo isso, esses deuses. Ah, eu to só cogitando... Ah, vai... vai ver que eles também só querem se divertir. Lembrei da velha Godô... Lembra da Godô, a primeira?
               
Belém, junho de 2011.


 * Diego Diniz é estudante de jornalismo, 
blogueiro no Absolvido. É idiossincrático com um humor atípico. 
Mocorongo. Um pouco médico, um pouco monstro. Um cara bacana.

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