Pular para o conteúdo principal

O incrível caso da Carola que queria ser mulher de Deus

Ela, somente ela, que julgava ser a injustiçada na vida, tinha em Deus a cura de seus desejos da carne. Esta que anda por sua casa desfilando suas rugas e com cangula atochada, pelos corredores, escadas e cozinha do seu mausoléu. Conserva ainda, debaixo da encruada fé e rugas buscadas na igreja, um viço de moça velha, mal sabem vocês que esta foi uma fervorosa puta, que dançava nas mesas de bar e encorajava os homens a tombá-la, quem teria coragem?

Muito se sabe sobre suas orgias regadas pelo dinheiro alheio, muitos homens rezaram, choram e se regozijaram a seus pés, mais do que isso, no seu altar. Já teve de tudo: beleza, paixões, dinheiro, diploma em faculdade pública e este hoje nada mais é do que um quadro talhado em madeira em uma parede esquecida, símbolo do seu antigo status. E um carro, não seu, mas com motorista parado na frente de casa, como presente por seus milagrosos serviços.

Muita bebida e festa com suas amigas, ela tinha vícios diferentes de hoje.

As Caçadoras de Otários como as quatro eram conhecidas se deram bem, só ela ficou no caritó: uma se casou com um gordinho que virou pajem de político, outra casou com um marido mambembe que viaja pelo Brasil na caça ao tesouro perdido, ou será da liberdade perdida? A mais esperta, segundo elas, arranjou seu gringo e foi para o estrangeiro, já está toda consertada. Naquela época eram balzaquianas desesperançosas, hoje já nem sei o que são.

E o quarto elemento?

Virou Carola! Essa mesmo: inventou agora que é mulher de Deus, gosta também de Jesus e agradece pelo alimento na mesa, na frente da plateia, claro. Pena, mas não podia ser freira, já tinha filho, fruto de uma relação com um gay anos atrás. E rezam os ritos que mantinha uma relação sexualmente santa com o vassalo da família, como dizia, era o faz-tudo da casa, um desnaturado amor por entre humilhações e saciedades.

Mas a Carola queria se redimir, ser coroada, até erguia em dias santos a bandeira da igreja e gostava de hóstias, claro, que regada a muito vinho. Poderia ser a mulher de Cristo, Madalena. Mas ela queria mais. Essa história aconteceu há muito tempo, só que hoje ninguém mais no bairro antigo se lembra do seu passado, mas do presente, do incrível caso da Carola que queria ser mulher de Deus. E ela acabou acreditando na própria farsa.


Carola
    

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Poetas Marginais e Geração Mimeógrafo

Estamos mais do que acostumados a ter acesso a livros e e-books que muitas vezes nem sequer passam pelo mercado editorial, mídia, crítica literária, universidade   ̶  isto é, espaços responsáveis pelo sucesso de público e sobre a inclusão da obra no cânone literário   ̶ ,   mas que se tornam fenômenos de leitura   e podem influenciar gerações futuras. Não, não estou falando de nenhum sucesso da web em blogs, sites, tumblr, fanzine virtual ou algo do gênero.  Estou falando dos poetas marginais e da Geração Mimeógrafo. Para você que acha que esses poetas vieram diretamente da cadeia, ou mimeógrafo é um bicho, uma doença ou um tipo de droga, explico.  Esses poetas começaram a produzir seus escritos a partir da década de 70 e se estenderam até 80 – alguns teóricos consideram apenas a década de 70, porém pela produção literária que até flertou com o movimento punk outros também consideram a segunda década –, ou seja, compreendidos nos anos duros da ditadura militar, em os

Só se sabe que aconteceu

Filme Antes do amanhecer(1995), de Richard Linklater Ele a convidou para um encontro. Conheciam-se há bastante tempo.  Sabiam que existia uma sintonia, mas algo os impedia de uma aproximação mais verdadeira. A desculpa dele para se verem era a solidão da vida de solteiro: não quero ficar em casa, “tá” batendo a depressão, cansei de assistir TV, “bora” fazer alguma coisa, tomar umas de leve... Ela estranhou a atitude dele, que era sempre bem tímido, engraçado, mas tímido.  Tudo parecia não querer esse encontro, ela inclusive. Estava receosa do que podia sair daquele dia. Já tinham se aproximado antes, mas ela fugiu. Sentia as pernas moles quando ele se aproximava, agia feito boba. Ora essa, tenho trinta e cinco anos. Como é que um menino desses consegue me deixar assim? Enquanto se encaminhava para encontrá-lo descobriu que não havia ônibus na cidade: quê isso minha gente, será que vou ter que ir a pé? Merda, vou chegar toda suada. Era mês de julho, ela morava na periferia

Gerda: A PORTA DO MEDO

Artemísia Gentileschi.  Susana e os velhos, 1610. Óleo sobre tela, 170×121 cm Gerda abriu a porta do medo, lá estavam presentes projetos perdidos, falta de consciência e ombridade, letargia, ausência de vigor e caminhos de expansão, injustiças. Para seu espanto, percebeu que sentimentos nem tão primitivos também estavam ali, pois já que era um ser em transição, agora é que tudo se misturava. Não é tão fácil se livrar do que se vai ser e do que se passou. Esta era a entrada de um terreno lodoso, barrento, como tabatinga de bairro antigo perto de rio. Ao entrar, afundou em sua trajetória, quis viver àquele lugar e teve medo de não sair, viu muita gente tão perdida quanto ela, misturada, e também suicidas, assassinos, estupradores, estelionatários, e sua própria sombra. Sim, para além de um Outro Terrível que já foi - objetificado para sustentar um ódio palatável, um ser fora de si - viu o quanto todos eles faziam parte dela, já que pensava "todos somos um".  Viu que sua