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Ficção de todo dia III

Quanto é que dá três? Num sabe fazer conta? Se soubesse não tava te perguntando... bora, quanto é? Passa logo menino, ei Lorraaaane, quantas vezes te falei que não é pra botar a mão aí, merda! Eu não botei a mão em lugar nenhum. Eu sou cega agora, é? Tô velha, mas não tô idiota, tira a mão daí, não vou repetir. Jucéliooooo, dou-te uma tapa, vem pra cá.

Dá oito e dez! Quê? Tô com cara de quem tá cagando dinheiro, né? Bora, minha senhora, eu quero passar, não tá vendo a fila que tá se formando aqui atrás? Já falei que não sou cega, aliás, falei que não era idiota... tanto faz, não sou nenhum das duas coisas e o que é que o senhor tem que se meter na minha vida? Já tenho que discutir com esse um que quer me roubar e aí vem o outro me importunar. Lorraaaaaaane, pequena, volta!

Sim, minha senhora, não vai passar? Tá todo mundo lhe esperando decidir se vai ou se fica. Quê? Se fica! O senhor não tem vergonha de chamar palavrão na frente dessas crianças? Esse mundo tá perdido mesmo, misericórdia. Mas eu não disse nada demais, a senhora que tá... Tá o quê? Lorraaaaaaane, vai tirar o teu irmão da porta, qualquer dia desses eu vou enlouquecer com esses dois, não tô pra isso não. Jucélio me ajuda aqui a morrer, merda!

Dá oito e dez. Toma logo isso daqui, eu hein. Esse pessoal anda muito estressado crianças. Lorraaaane, traz o Jucélio pra cá antes que eu quebre a cabeça dos dois, bora sentar lá pra trás que esse motorista não deve ter mãe pra correr desse jeito, credo...gente estressada... 

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